CARTA DE PRINCÍPIOS

CARTA DE PRINCÍPIOS

O Coletivo A Verdade Liberta surgiu da necessidade de se estabelecer um diálogo efetivo entre os evangélicos progressistas e os movimentos de esquerda, além de buscar estabelecer um consenso entre os próprios evangélicos progressistas sobre os principais assuntos que estão no centro do debate político no país. Somos, em primeiro lugar, evangélicos e, por consequência, de esquerda, tão somente por compreender as similaridades entre os movimentos de esquerda e os ideais cristãos. Com efeito, prezamos pela nossa autonomia enquanto evangélicos e jamais negociaremos a nossa fé.

DOS PRINCÍPIOS QUE SEGUIMOS

1. COMBATE AO FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO

Somos totalmente contra o fundamentalismo religioso, pois acreditamos que a nossa missão é anunciar o Evangelho aos homens, esperando que Deus lhes dê o crescimento espiritual, conforme I Coríntios 3:6, e não impor a nossa crença por meio de leis, pois tal prática não produz conversão, sendo antes a utilização da religião como ferramenta política para manipular a população.


2. SEPARAÇÃO ENTRE ESTADO E IGREJA

Estado Laico jamais significou Estado Ateu, como tem sido interpretado por certos grupos conservadores. Significa apenas que o Estado não imporá nenhuma religião à sua população, garantindo a liberdade de crença, não apoiando nem se opondo a qualquer credo religioso. Acreditamos que tal liberdade é de suma importância para a verdadeira aceitação dos princípios cristãos, que rejeitam a coação, sem valor espiritual. Qualquer perseguição religiosa, em qualquer lugar do mundo, não nos interessa.


3. CONSCIENTIZAÇÃO SOBRE A INTOLERÂNCIA RELIGIOSA DIRECIONADA A EVANGÉLICOS

Este princípio não é uma tentativa de vitimização, muito pelo contrário. O que está em pauta é uma reflexão sobre as generalizações que são feitas em relação aos evangélicos e que impedem a construção de um diálogo empático entre estes e outros membros da esquerda.

Vale ressaltar que, em alguns momentos da história, um falso cristianismo deixou de ser perseguido e passou a ser utilizado como ferramenta de perseguição, demonstrando que ideais sagrados para um povo podem ser deturpados para servirem a interesses políticos, sociais e econômicos. Isto ocorreu, por exemplo, na promoção do cristianismo como religião oficial do Império Romano, no século IV, e na instituição da Inquisição, na Idade Média.

Nosso propósito é demonstrar a harmonia que existe entre a religião cristã e as políticas de esquerda, que trazem os mesmos ideais de igualdade social aplicados pelos apóstolos, como encontrado no livro de Atos 4:34-35: "não havia, pois, entre eles necessitado algum; porque todos os que possuíam herdades ou casas, vendendo-as, traziam o preço do que fora vendido, e o depositavam aos pés dos apóstolos; e repartia-se a cada um, segundo a necessidade que cada um tinha". Isto demonstra que os princípios cristãos são adequados à política de esquerda de combate à miséria.


4. LIBERDADE DE CRENÇA E DIVERSIDADE CULTURAL

Não só respeitamos culturas diferentes, como as enxergamos com legitimidade, pois somos parte de um país multicultural, sendo o respeito e a tolerância fundamentais para uma convivência pacífica. Ainda, somos cientes de que atacar determinada cultura ou religião implica em atacar diretamente os sentimentos do nosso próximo, o que é totalmente contrário aos ensinamentos de Jesus, que sempre demonstrou respeito às demais culturas, como ao povo samaritano, que não era bem visto pelo povo judeu, mas que recebeu de Jesus o mesmo amor e consideração com que tratava o seu próprio povo, anunciando a salvação à mulher samaritana que encontrou junto ao poço de Jacó (Jo 4:5-43). Em outro momento, questionado sobre quem seria o nosso próximo, Jesus contou a parábola do bom samaritano para demonstrar que o amor não deve fazer qualquer distinção de crença ou raça (Lc 10:30-37).


5. SEPARAÇÃO ENTRE CIÊNCIA E RELIGIÃO

A ciência nunca anulará a religião, assim como a religião não pode querer anular a ciência, pois ambas têm o seu campo de atuação e a sua importância dentro da história. Na Bíblia Sagrada, em Daniel 1:17, está escrito que Deus deu a Daniel, Sadraque, Mesaque e Abednego sabedoria e inteligência para conhecerem todos os aspectos da cultura e da ciência. Acreditamos que a ciência é um dom de Deus, sendo do agrado Dele que o homem a estude e desenvolva em benefício da humanidade.

Somos contra a intervenção religiosa na ciência ou desta na religião, posto que se tratam de campos distintos, sendo a religião, como já indica e etimologia da palavra, o religamento do homem com Deus. A ciência tem a função de estudar os aspectos materiais, assuntos referentes ao mundo em que vivemos, enquanto a religião busca transcender. Dessa forma, a intervenção da religião na ciência, além de desnecessária, configura má-fé daqueles que utilizam a igreja para fazer valer suas próprias ideias e vontades.

Igualmente nos posicionamos contra as teorias cientificistas e positivistas, típicas do militarismo e da direita brasileira, que fundamentaram os símbolos do Estado brasileiro no final do século XIX e início do século XX e legitimaram o racismo contra povos africanos, o evolucionismo social contra os mais pobres e a xenofobia, por um suposto orgulho ufanista à pátria. Além disso, tais teorias trataram a ciência como sendo a "religião da humanidade" e trouxeram marcas e prejuízos históricos ao nosso país. 

Em síntese, experiências históricas e sociais nos mostram que a compreensão sobre os dogmas religiosos e científicos variam de uma época para outra, sendo muitas vezes utilizados de forma arbitrária pelos detentores do poder para favorecer interesses próprios. Nesse sentido, não aceitamos a utilização nem da ciência nem da religião como respaldo para inferiorizar e perseguir, assim como não apoiamos a tentativa de desvalorização do conhecimento crítico e do patrimônio científico - e não cientificista - construído historicamente pela humanidade, pois, como cristãos e brasileiros, nos preocupamos com o futuro da nossa nação.


6. VALORIZAÇÃO DA FAMÍLIA

Ao longo da história, a família se tornou uma instituição fundamental para a organização social e para o desenvolvimento humano, sendo os alicerces para a construção da nossa identidade, cultura, educação e para um desenvolvimento emocional e psicológico saudável. A família ideal nada mais é do que um grupo de pessoas que cumpra tal função, ou seja, que promova todo o apoio, tolerância, afeto e cooperação necessários para a criação de um ambiente que propicie o crescimento mútuo dos indivíduos.

De acordo com a Bíblia, o conceito da família espiritual é ainda mais abrangente, pois, em Lucas 8:21, Jesus diz que todos aqueles que obedecem a Deus são como sua mãe e seus irmãos. Convém ressaltar que a Bíblia cita modelos diversos de família, como Lázaro que vivia com suas irmãs, a viúva da cidade de Naim que criava seu filho único e Paulo que era solteiro, sendo que todos foram amados e agraciados por Deus.

O Dia Nacional de Valorização da Família tem o intuito de incentivar a criação de políticas públicas capazes de promover a igualdade entre cônjuges, a assistência social a crianças e adolescentes, a educação, entre outras medidas que possam gerar estruturas sociais para que famílias marginalizadas atinjam condições mínimas de estabilidade.

Em caminho contrário, avançam as políticas econômicas e sociais da direita brasileira, que são agentes desestruturantes da família, pois, ao instituir o salário mínimo abaixo do valor aprovado pelo congresso, sem nenhum aumento real, ao dificultar a aposentadoria, diminuir o valor dos benefícios para idosos e deficientes e carentes, e reduzir os investimentos na educação pública, contribui para instalar a insegurança financeira nas famílias, fazendo com que crianças deixem as escolas para ajudar na renda familiar, que os idosos precisem continuar trabalhando, mesmo com condições reduzidas de saúde, que o pai, mãe, tio, avó, companheiro ou companheira precise se dedicar a jornadas duplas de trabalho para sustentar sua família, deixando de ter tempo para investir no convívio familiar, assim como tira a esperança dos jovens de famílias carentes de ingressarem em universidades e, assim, construírem um futuro melhor para si e suas famílias. 

Por fim, convém ressaltar que, segundo Tiago 1:27, a única religião verdadeira para com Deus é visitar os órfãos e as viúvas em suas tribulações e guardar-se da corrupção do mundo. Portanto, nós cristãos temos o dever de lutar por uma política de inclusão e assistência aos mais necessitados.

7. COMBATE AO MACHISMO E À MISOGINIA

Misoginia é o desprezo ou a repulsa contra mulheres. Uma pessoa misógina não gosta de mulheres ou as trata de maneira inferior, como se as mulheres não fossem seres capazes e autônomas. A Bíblia não promove nem aprova a misoginia. Deus criou tanto homens quanto mulheres para Sua glória, com valor igual. Cada pessoa é importante e preciosa para Deus, seja homem ou mulher. A misoginia vai contra os princípios bíblicos do amor e do respeito. Onde há misoginia acontece todo tipo de abusos contra mulheres, como maus-tratos, desrespeito, restrição de direitos, liberdades e violência. 

Ao lermos a Bíblia descobrimos que há vários lugares onde os princípios básicos do feminismo e os ensinamentos de Deus estão em concordância: a Bíblia confirma que as mulheres têm sido oprimidas ao longo da História. O problema começou com a entrada do pecado no mundo. A partir daí, sempre houve atritos entre homens e mulheres (Gn 3:16).

No entanto, no princípio Deus criou tanto o homem quanto a mulher à Sua imagem e semelhança e deu aos dois a mesma missão na terra (Gn 1:27-28). O homem e a mulher foram criados fisicamente diferentes, mas com o mesmo valor e o mesmo propósito: dar glória a Deus. A Bíblia não dá nenhuma indicação que Deus tenha feito Adão e Eva com alguma diferença de inteligência, capacidade emocional, responsabilidade nem de trabalho. Eva foi criada para corresponder a Adão, para ser seu igual, ao contrário dos animais (Gn 2:18).

No Antigo Testamento, várias leis que Deus deu a Moisés visavam proteger mulheres e outras pessoas em situação vulnerável. Essas leis não eram o projeto de uma sociedade utópica, perfeita, mas trabalhavam dentro da realidade da época para mostrar a atitude correta que cada pessoa deveria ter. A pessoa que realmente ama a Deus luta contra injustiças e defende a causa dos mais fracos e vulneráveis (Pv 31:8-9).

A forma como Jesus tratava as mulheres era bastante revolucionário para a cultura judaica de sua época. Enquanto muitos líderes religiosos nem acham que mulheres conseguiam entender as Escrituras, Jesus ensinou verdades profundas a mulheres e teve várias seguidoras, amigas e financiadoras de seu ministério. Ele não impunha limites ao seu crescimento espiritual por serem mulheres (Gl 3:26-28).

Ao todo, a Bíblia mostra uma grande variedade de mulheres: donas de casa e empresárias, seguidoras e líderes, dependentes e independentes, pobres e ricas, todas criadas à imagem e semelhança de Deus, como os homens. Portanto, acreditar que as mulheres merecem o mesmo respeito, a mesma dignidade e o mesmo acesso a oportunidades que os homens, sem serem maltratadas, é bíblico - tonando-se um dos princípios deste coletivo. 

8. COMBATE À LGBTQIA+FOBIA

Um LGBTQIA+ é assassinado no Brasil a cada 19 horas, conforme o Grupo Gay da Bahia. E o Brasil figura como o país que mais mata LGBTQIA+ no mundo, diz a ONG Transgender Europe. É inegável que fatores culturais e moralizantes são motivadores de muitos crimes desta natureza. Na visão de grupos conservadores, um casal formado por pessoas do mesmo sexo simboliza um ataque direto à ideia de família tradicional, na qual o homem exerce o papel de patriarca. Além disso, pelo senso comum, LGBTQIA+ são associados à libertinagem, ou seja, à ausência de valores éticos e morais. 

Como sabemos, a Bíblia é um livro que foi sendo construído durante séculos, perpassando diferentes momentos históricos. A este respeito, em um vídeo disponibilizado no canal Esperançar, o pastor Henrique Vieira afirma: "tomar a Bíblia de forma literal, desconsiderando contextos culturais e históricos, faz com que a gente incorra em vários equívocos. Lamentavelmente vamos reconhecer e admitir, com tristeza no coração: a Bíblia já foi utilizada para legitimar a escravidão, o Apartheid, a colonização genocida da América, a subordinação das mulheres, e sempre em nome dessa 'fidelidade' à Bíblia". Ainda segundo o pastor, "a Bíblia precisa ser lida considerando que a palavra de Deus se deu nas palavras humanas, portanto, dentro da história, a partir de uma cultura". Atualmente, essa suposta fidelidade à Bíblia tem servido como subterfúgio para legitimar o processo de genocídio direcionado aos LGBTQIA+ no Brasil e no mundo.

Em um momento histórico no qual as mulheres adúlteras eram apedrejadas até a morte - sentença aplicada exclusivamente às mulheres e que hoje se manifesta através de outras formas de violência e se estende aos LGBTQIA+, Jesus interrompeu um apedrejamento e, através desta atitude, deixou um ensinamento que ecoa para a eternidade: 

[...] Jesus se levantou e lhes disse: Aquele que dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro que lhe atire pedra (Jo 8:7, Almeida Revista e Atualizada).


9. RETORNO AO AMOR DE CRISTO 

Ao adaptar Deus ao nosso universo subjetivo sem levar em conta Suas essenciais caracterizações bíblicas, corremos o risco de nos distanciarmos do coração de Cristo, passando a servir ao conveniente mundano. Como consequência, o Deus da justiça e do amor pode passar a ser o Deus do punitivismo e da violência, ambiente propício para o surgimento de falsos evangélicos que pregam o ódio às minorias e passam até mesmo a louvar a tortura, desconsiderando o fato de que Jesus, enviado a este mundo para nos dar a salvação, morreu sendo torturado pelo Estado Romano. 

Enquanto cristãos, entendemos que o preconceito, a discriminação e o discurso de ódio, hoje propagados principalmente por grupos de extrema direita, são práticas inadmissíveis para os seguidores de Cristo, pois ferem os ensinamentos que Jesus legou à humanidade. A essência de tais ensinamentos pode ser encontrada no livro de Mateus 22:37-40:  "Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento. Este é o grande e primeiro mandamento. O segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas" (Almeida Revista e Atualizada).

No episódio que ficou conhecido como o Sermão do Monte, Jesus expressa parte significativa da essência do evangelho, com os dizeres: "Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus. Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados. Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra. Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão fartos. Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus. Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus. Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus (Mt 5:3-10, Almeida Revista e Atualizada).

Em um momento em que o fascismo bate à nossa porta, não podemos vivenciar tal situação sem ao menos propor um possível caminho para a desconstrução do falso evangelho, que infelizmente tem servido como pano de fundo para a promoção de partidos políticos pautados por ideais anticristãos. São estes os princípios que seguimos e que sustentam as nossas ações enquanto cristãos que buscam seguir a Jesus em justiça e verdade.

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